Para muitos brasileiros, é risível a ideia de que uma vacina poderia transformar alguém em jacaré, como insinuou o presidente Jair Bolsonaro sobre o imunizante da Pfizer contra a covid-19 em novembro do ano passado. Para outros, no entanto, esse receio faz sentido. É o caso dos povos indígenas: na cosmologia ameríndia, na qual se crê que os animais são como seres humanos e simplesmente têm outra roupagem no universo terrestre, é perfeitamente plausível que um homem se transforme em réptil. “A mentira de que a vacina contra a covid-19 pode alterar o DNA é um dos principais argumentos que têm feito com que indígenas se recusem a se imunizar”, explica Reijane Pinheiro, antropóloga da Universidade Federal do Tocantins (UFT), que atua com comunidades indígenas do norte do Estado, e faz um levantamento sobre as fake news que mais têm causado impacto entre esses povos.
A principal informação que os influencia a recusar a vacina, segundo o mesmo levantamento, é a teoria de que eles seriam cobaias de um imunizante sem eficácia comprovada. “Os parentes [como os povos originários se chamam entre si] estão com medo. Se o próprio presidente da República diz que não vai se vacinar, eles dizem que também não vão. E faz sentido, porque se nunca fomos prioridade para esse Governo, é difícil explicar porque somos grupo prioritário nessa situação”, comenta Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). A priorização dos indígenas na campanha nacional de vacinação ocorreu depois de uma grande mobilização das lideranças junto à Justiça, e uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a União elaborasse um plano de enfrentamento específico. De acordo com o Ministério da Saúde, a covid-19 já matou 620 indígenas. O dado oficial não considera, no entanto, aqueles que vivem fora dos territórios homologados, e a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) aponta que, na verdade, são 1.020 óbitos.
As campanhas de desinformação circulam principalmente por WhatsApp e Facebook, segundo as fontes consultadas pelo EL PAÍS, mas também pelo sistema de rádio que conecta as comunidades originárias. Na região do Rio Negro, a mais preservada da Amazônia, na tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia, vivem 750 comunidades e cerca de 40.000 indígenas, dos quais aproximadamente 10.000 receberam a primeira dose, segundo a FOIRN. No território que tem quase o tamanho de Portugal e onde a logística é quase exclusivamente via fluvial, mesmo sem acesso à internet, as notícias falsas se espalham, principalmente através de líderes religiosos, conforme conta Baré. “Muitas aldeias são visitadas por pastores evangélicos que dizem que a vacina tem um chip do diabo, espalham conversas mirabolantes.” O líder indígena diz que pelo menos uma aldeia inteira, de 85 pessoas, se recusou a ser vacinada. Em outra comunidade, de 1.000 indígenas, apenas 164 quiseram receber o imunizante.
Na região do Vale do Javari (AM), que tem a maior concentração de povos isolados do mundo, a situação se repete. “Pelo menos três comunidades foram avisadas por pastores e missionários de que a vacina pioraria a saúde dos indígenas e muitos iriam morrer. Muitos religiosos que atuam aqui são bolosnaristas e são eles os culpados de que os parentes não queiram tomar a vacina. Tem uma aldeia perto do Acre, por exemplo, que tem internet e um pastor evangélico da região estava mandando fake news para outras aldeias por WhatsApp”, conta Paulo Kenampa Marubo, coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Para contornar a situação, Paulo e outras lideranças passaram a acompanhar as equipes de saúde para explicar que o imunizante é seguro. “Quando chegamos com a vacina, mesmo algumas lideranças de aldeia gritavam ‘meu Deus, eu não quero morrer, não posso tomar essa vacina porque não posso morrer agora!’ Foi difícil explicar que a vacina é justamente para não morrer”, conta.
Nos territórios do Rio Negro, as lideranças usam o sistema de radiofonia —mais de 410 estações em toda região— para conscientizar os povos originários sobre a importância da vacinação. “Também estamos acompanhando as equipes de saúde, porque se elas não forem às aldeias junto com outros indígenas, não vai funcionar”, diz Marivelton Baré.
A antropóloga Reijane Pinheiro lembra que, do ponto de vista histórico, as vacinas são aliadas dos povos indígenas, garantindo, por exemplo, a diminuição da mortalidade infantil, mas ressalta que eles “têm toda a razão em desconfiar do Estado”, já que os próprios povos originários tiveram que judicializar seu direito à proteção por parte de um Governo que tentou negar até mesmo seu acesso à água potável durante a pandemia. “A memória histórica das epidemias entre os povos indígenas é muito dolorosa, há traumas coletivos que ressaltam entre eles o caráter destruidor do contato com o mundo não-indígena, com o mundo dos brancos”, acrescenta a pesquisadora, que trabalha principalmente na Terra Indígena Xerente. Segundo ela, há aldeias inteiras na região, compostas por 40 ou 50 pessoas, que se recusaram a tomar a vacina. “Nessas comunidades menores, a resistência é maior”, diz.
A Apib lançou em janeiro a campanha Vacina, parente! para conscientizar as aldeias sobre a importância da vacinação no combate ao coronavírus e para cobrar do Estado a imunização de todos os povos originários, iniciativa à qual se somou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Igreja Católica. Lideraças indígenas contam, no entanto, que funcionários do Distrito Sanitário Indígena (Dsei) e da Fundação Nacional do Índio (Funai) foram recebidos a flechadas, no dia 2 de fevereiro, pela aldeia Jamandi, no sul do Amazonas. Segundo eles, Joseph Campbell, um missionário ligado à igreja Greene Baptist, nos Estados Unidos, foi o responsável pela resistência dos indígenas à vacina. O grupo afirmava que só aceitaria ser vacinado se Campbell estivesse presente. Ele foi acusado de proselitismo religioso e de interferência na cultura dos Jamamadi. Sua entrada ilegal em área de indígenas isolados já havia rendido uma investigação na Funai, que encaminhou o caso ao Ministério Público Federal (MPF), em novembro de 2020. A reportagem procurou a Greene Baptist para comentar as acusações, mas não obteve retorno.
Mas a influência negativa pode vir até mesmo de profissionais de saúde, conforme relata Mariana Marelonka, médica e consultora do Instituto Iepé, que atua há 10 anos na terra indígena Wajãpi, no Amapá e no norte do Pará, e que trabalha com a formação de agentes indígenas de saúde. Ao visitar a comunidade em janeiro, ao lado de uma infectologista, ela se surpreendeu com a recusa em tomar a vacina contra a covid-19. “Muitos me mostraram o conteúdo mentiroso que recebiam no WhatsApp e no Facebook, que incluía até vídeos de médicos dizendo que nos hospitais em que trabalham as pessoas morreram após tomar a vacina”, conta.
O povo Wajãpi, que hoje soma 1.700 pessoas, já teve sua população reduzida a 200 pessoas durante uma epidemia de sarampo no início dos anos 1970. “Por isso dizemos a eles que a vacina contra a covid-19 é tão importante quanto a do sarampo ou da gripe e que, neste caso, eles podem até pegar a doença depois de imunizados, mas já sem o risco de ficar em estado grave”, explica a médica. No caso dessa etnia, a imunização é especialmente importante para manter o controle da disseminação do vírus na comunidade, que teve até o momento uma única vítima fatal —à diferença do que ocorreu entre outros povos da região amazônica.
A médica e sua equipe conseguiram reverter a descrença dos indígenas com muito diálogo e graças a uma imagem com perguntas e respostas sobre a vacina que circulou nos grupos de WhatsApp. “É importante ouvir as dúvidas e receios, conversar e explicar tudo, é o único jeito de convencê-los de que a vacina é segura. Envolver as lideranças e agentes de saúde indígenas também e fundamental”, explica. Ainda assim, cinco Wajãpi se recusaram a tomar a primeira dose. A receberão nas próximas semanas, quando os demais parentes da comunidade tomarem a segunda dose do imunizante.
Por: Joana Oliveira
Fonte: El País