Coordenador do Observatório Covid-19 da Fiocruz, o professor Carlos Machado é um especialista em grandes desastres na área da saúde. Há mais de 20 anos acompanha de perto as maiores emergências sanitárias do Brasil. Machado assegura nunca ter vivenciado nada semelhante ao atual colapso do sistema de saúde em praticamente todo o País, pelo avanço do novo coronavírus.
No mesmo dia em que o Brasil atingiu a marca das 300 mil mortes, o especialista fez uma advertência dramática às autoridades do País. Se um lockdown (fechamento total com paralisação de quase todas as atividades) de pelo menos 14 dias não for adotado imediatamente e de forma coordenada por todas as esferas, chegaremos facilmente à dolorosa cifra de 5 mil mortes/dia até o fim de abril.
O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em sua primeira entrevista coletiva no cargo, porém, descartou as restrições de mobilidade. Já o presidente Jair Bolsonaro insistiu no “tratamento precoce” da doença – algo que, até agora, não tem sua eficiência comprovada cientificamente.
“O momento é de medidas restritivas coordenadas, nos níveis estadual e federal. O sistema já chegou ao limite. Não há mais tempo para debates. Não há mais tempo para ideias dissociadas da realidade. Não temos nem mais um minuto a perder. A situação é dramática em todo o País, são milhares de famílias devastadas”, afirmou em entrevista ao Estadão.
O pesquisador descreveu a escalada de mortes por covid-19 e se alarmou com o que pode estar por vir.
“Achamos que era impensável chegar a dois mil óbitos por dia, achamos que era impensável chegar a três mil óbitos”, lembrou. “Se nada for feito, nada nos impedirá de chegar a quatro ou cinco mil óbitos por dia. Ainda mais com as novas variantes que aceleram o processo de transmissão e infecção.”
Machado lembrou que, embora a maioria da população se concentre nos grandes centros urbanos, há 49 milhões de brasileiros que vivem em regiões sem serviços de saúde de referência. Ou seja, não têm nenhuma condição de atender aos casos mais graves de covid-19.
“A realidade atual é diferente de tudo o que já vivemos antes”, alertou. “A situação de colapso é generalizada, Não temos para onde correr, não podemos contar com a ajuda de ninguém.”
Pela primeira vez o boletim do Observatório da Fiocruz se referiu à atual pandemia como uma crise humanitária. O que mudou da semana passada para ontem (terça, 23)?
Desde o início da pandemia, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, chamou a atenção que essa era uma crise sanitária que poderia ser combinada a uma crise humanitária. A crise sanitária se caracteriza pelo não funcionamento ou colapso do sistema de saúde, a incapacidade de atender às necessidades de todos. E não somente no caso de pacientes de covid, mas em todos os outros. Estamos vendo um recrudescimento do número de casos em velocidade muito grande, a incapacidade de dar uma resposta nas mesmas proporções por falta de insumos, de equipes médicas qualificadas e porque temos um limite de abertura de novos leitos. A crise humanitária vem a partir do momento que vemos uma parcela significativa da população passando da pobreza para a extrema pobreza, bem como pessoas passando fome – uma situação que tende a se agravar diante desse contexto.
Por que a mortalidade por Sars-CoV-2 está aumentando? O boletim indica um aumento de aproximadamente 2% para 3% no último mês.
A taxa de mortalidade aumenta justamente por conta do colapso, porque a pessoa deixa de procurar o sistema de saúde ou procura, mas não consegue receber o atendimento adequado.
O colapso do sistema de saúde pode se agravar ainda mais?
O crescimento do número de casos está aumentando a pressão sobre o sistema de saúde. Boa parte das capitais já está com a ocupação dos leitos de UTI covid-19 para adultos em 90%. E estamos batendo no limite da capacidade do sistema de saúde de abertura de novos leitos para covid. Para o próximo boletim, estamos buscando dados de excesso de mortalidade em geral, porque há indícios de que muitas pessoas já podem estar morrendo em casa. Não é possível mais neste momento adiarmos medidas que são, sim, um remédio amargo, mas absolutamente necessário. E essas medidas precisam ser acompanhadas de proteção e assistência social. O cenário é muito dramático, urgente. Não podemos aguardar mais uma semana, mais duas semanas; o número de casos está aumentando e as pessoas estão morrendo nos hospitais e estão morrendo também sem assistência.
Por que o senhor diz que não podemos esperar mais uma semana? O que mostram as experiências de lockdown feitas aqui no Brasil e em outros países?
O lockdown, para ser eficiente, tem que durar de 14 a 21 dias. Esse é o tempo que demora, em média, para os sintomas se manifestarem de forma clara e evidente e, no caso dos casos mais graves, que haja a evolução da doença. Ou seja, se fecharmos tudo hoje, nos próximos 15 dias ainda teremos casos surgindo porque as pessoas já tinham se infectado. A experiência em Araraquara (que decretou lockdown) nos mostra que cinco dias após o fechamento, ainda havia aumento de 12% nos casos de internação. Eles só conseguiram reduzir em 40% a transmissão do vírus no 17º dia do lockdown. Essas medidas deram certo também em outros países. Mas precisa de tempo para funcionar. Se adiarmos mais uma semana, aumentaremos muito o número de mortes.
O senhor pede um lockdown imediato de pelo menos 14 dias. Esses “feriados” de dez dias decretados no Rio e em São Paulo são inócuos?
(Fechar por) Dez dias só faz sentido se for apenas para reavaliar. As experiências nacionais e internacionais mostram que, em média, no 15º dia de fechamento, a redução da transmissão do vírus é de 30%. Em Araraquara, como eu disse, somente no 17º dia eles conseguiram chegar a 40% — que é o percentual ideal para desafogar o sistema e evitar o prolongamento do colapso na saúde.
O que pode acontecer se não adotarmos medidas mais drásticas, e em caráter nacional, de restrição de mobilidade, dadas as taxas crescentes de transmissão e mortalidade?
Sem a adoção de medidas restritivas, veremos um crescimento exponencial de casos e óbitos, diante de um sistema de saúde que já chegou ao seu limite. Achamos que era impensável chegar a dois mil mortos, achamos que era impensável chegar a três mil mortos, mas nada nos impedirá de chegar a quatro ou cinco mil óbitos por dia até o fim de abril, sobretudo com o aumento da circulação das novas variantes, que aceleram a transmissão do vírus. Outro cenário é que as medidas sejam adotadas por tempo insuficiente ou de forma parcial. Teremos então dois prejuízos: não vamos reduzir a transmissão a ponto de evitar o colapso e a sobrecarga do sistema de saúde e, o mais sério ainda, vamos desacreditar as medidas de lockdown, impedindo que elas sejam adotadas novamente. A gente sabia disso desde o início da pandemia, que teríamos que ter bloqueios e lockdowns intermitentes, sempre que chegássemos ao limite do sistema de saúde. É isso que a Europa está fazendo. Adotar medidas parcialmente só servirá para gerar desgaste para todos e descrédito das medidas. E não vai ajudar em nada a melhorar a economia.
Por que não é possível ampliar a capacidade de atendimento?
Existe um limite para a ampliação do número de leitos de alta complexidade, que é o caso das UTIs covid. Não só pelos equipamentos, mas também pela falta de profissionais especializados. E os trabalhadores de saúde especializados que estão na linha de frente estão esgotados, com excesso de trabalho, estresse. Além disso, veja: Dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 239 integram regiões de saúde (conjunto de municípios com acesso a atendimento de maior complexidade) com recursos. Tudo bem que esses municípios concentram 76,4% da população. Mas existem outros 23,6%, 49 milhões de pessoas, que vivem em regiões onde não há serviço de referência, não há leitos de maior complexidade para atendimento de casos graves de covid. Isso é muito crítico. Quando vejo o que está acontecendo em São Paulo, que dispõe de mais recursos em termos de hospitais e leitos de covid, que estão adotando medidas de isolamento, que não tem negacionista, fico imaginando o restante do País diante da interiorização cada vez maior da pandemia.
O presidente foi ontem para a televisão e não mencionou nem o colapso dos hospitais, nem a falta de oxigênio, muito menos lockdown. A primeira entrevista do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi na mesma toada. O que falta para convencer o presidente e seu ministro?
O nosso papel, como pesquisadores, é exatamente mostrar o que está acontecendo na realidade, com ideias devidamente fundamentadas. Quando eu tenho discursos e falas que não são amparados em evidências, eu tenho um descolamento completo da realidade. E não há como enfrentar essa pandemia sem olhar de frente para a realidade dramática em que vive a maior parte da população brasileira. Não há mais tempo para realidades alternativas, para ideias dissociadas da realidade. Não temos mais nenhum minuto a perder.
Já houve alguma pandemia na história do Brasil que possa ser comparada ao que está acontecendo agora no País?
Eu trabalho há anos com desastres e emergências de saúde. Tivemos várias situações de colapso dos sistemas de saúde, mas de forma localizada. Foi o caso da enxurrada na Região Serrana do Rio, em 2011, as enchentes em Santa Catarina, em 2008. A crise dos imigrantes haitianos e, depois, venezuelanos em Roraima. Tivemos crises localizadas de dengue e de zika no Nordeste. Mas sempre pudemos contar com recursos de outros municípios e Estados. Neste momento, não temos quem chamar, não temos para onde correr, não podemos contar com a ajuda dos outros. É uma realidade completamente diferente de tudo o que já vivemos antes.