*Folha de São Paulo
Mesmo neste momento, o mais agudo da pandemia de Covid-19 no país até agora, com recorde de casos e de mortes diárias e num estágio em que quase todo mundo conhece alguém que morreu por causa da doença, proliferam comportamentos que atentam contra a própria chance de sobrevivência.
Máscaras são deixadas no queixo, no bolso ou em casa, visitas a amigos ou familiares ganham espaço na agenda e bailes e festas clandestinas atraem pessoas, apesar da orientação estrita para que aglomerações sejam evitadas.
Nem imagens e relatos de pessoas padecendo em UTIs, muitas vezes intubadas e sujeitas a complicações como sepse e sequelas neurológicas, conseguem inibir completamente essas atitudes.
A psicóloga e professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Katie Almondes explica que há uma espécie de turvação no prisma pelo qual as pessoas enxergam e assimilam os benefícios de seguirem as normas recomendadas por especialistas e entidades de saúde.
A mesma confusão se dá na percepção de eventuais pontos negativos para a adoção da conduta correta.
“Nem sempre as crenças de saúde são subsidiadas pelas informações técnico-científicas. Elas são retroalimentadas pela cultura popular, da comunidade, da família… Com relação ao uso de máscara, há certos aspectos percebidos como negativos. ‘É chato, ruim de usar na academia, as pessoas não entendem o que você fala’ etc. Aí elas podem juntar isso com uma notícia, falsa ou não, que atenua a gravidade da infecção ou até que diz que a pandemia não existe.”
O fato de um parente próximo, como pai ou mãe, ter tido a doença e ter se recuperado pode levar a pessoa a pensar que tudo que se vê por aí é sensacionalismo, segundo a psicóloga. E quanto maior for a afinidade emocional com a fonte das informações, maior será esse poder de penetração.
O neurocientista Sidarta Ribeiro, também da UFRN, afirma que, quando o medo é grande demais, tendemos a reprimi-lo. Além disso, diz que existe uma espécie de “efeito rebote” de medidas de restrição longas que não foram organizadas e, por isso, não foram tão efetivas. “Está mais difícil segurar o povo em casa.”
Curiosamente, o cérebro humano é ótimo em perceber e processar novidades, mas se habitua com um estímulo que se repete. A exceção é a dor, mas só aquela sentida em si mesmo —com a dor alheia, o cérebro consegue, sim, se acostumar. Daí o fenômeno de a dor representada em fotos e vídeos terem perdido impacto ao longo dos meses.
“A quarentena se estendeu muito, pensávamos que ficaríamos apenas semanas ou poucos meses em casa. Aí as pessoas ficam menos tolerantes e acabam se atrapalhando muito nessa análise”, afirma Irani Argimon, psicóloga e professora da PUC-RS. “Não é piada o que acontece com essa tolerância ao isolamento. A esperança vai se fragilizando e as pessoas começam a nem se reconhecer nessa nova situação. O impacto da pandemia na saúde mental é grande.”
Desde os primeiros meses da pandemia já se notavam os efeitos na saúde mental: primeiro em profissionais de saúde, depois nos pacientes e na população em geral. Estresse pós-traumático, ansiedade, insônia, abuso de álcool e ideação suicida estão no rol dessas condições. E a solidão serve de fermento para que o problema cresça, com menos chance de ser amparado no seio familiar ou por membros da comunidade.
“É por isso que é importante ter contato social, seja pelo telefone ou pela janela, com os parentes e vizinhos, mas não na balada ou em aglomerações”, diz Argimon.
Os idosos, especialmente, estão sujeitos aos malfeitos da atual conjuntura. “Eles já sofrem com um suporte social inadequado, com a falta de informação e de discussões saudáveis, e agora perderam ainda mais o amparo nesse momento de fragilidade, medo e solidão”, diz Almondes.
Mesmo assim, surpreendentemente, eles têm se demonstrado mais resilientes que outros grupos, como os de adultos jovens, argumenta a docente, provavelmente devido à maior experiência em lidar com situações de perda e de luto.
Outro aspecto que explica ações inadequadas na pandemia é o déficit educacional. “As pessoas se esqueceram ou nunca aprenderam o que é um vírus, que ele pode se espalhar pelo ar em gotículas e infectar outras pessoas. As pessoas não sabem que usar máscara é uma medida para não contaminar o próximo”, afirma Ribeiro.
“E mesmo quem está fazendo tudo certo por tanto tempo pode cometer atos falhos, bobeiras, e se contaminar. É um grande desafio permanecer na linha. Não tivemos uma resposta síncrona à pandemia, mas, sim, uma resposta anárquica e fragmentada. É a tempestade perfeita, ainda mais com a vacinação heterogênea. É um pesadelo virando uma avalanche.”
Muitas vezes se cai na armadilha do fatalismo: por maior que seja o esforço empreendido, o resultado não vai se alterar. Isso quer dizer que, se tivermos que morrer de Covid-19, isso vai acontecer, e não adianta ficar infeliz dentro de casa, usar máscara ou se privar da vida social. Uma das metas é mudar essa mentalidade, mas não é algo trivial.
Infelizmente os especialistas ouvidos pela reportagem não enxergam um caminho fácil para educar e sensibilizar a população neste estágio. Mas há, sim, certas tarefas a fazer.
Para Ribeiro é fundamental intensificar os investimentos em pesquisa, por exemplo descontingenciando as verbas do FNDCT, fundo que recebe dinheiro do setor privado com intuito de fomentar a pesquisa, mas que vem sendo usado pelo governo para atingir suas metas contábeis.
“Nós deveríamos estar desenvolvendo vacinas no país, distribuindo-as para os outros. Há muitos cientistas qualificados para isso. Nos termos que o governo federal gosta de usar: temos um exército gigantesco, mas estamos sem armas e sem munição.”
Enquanto a vacina não chega, Argimon recomenda a busca por atividades prazerosas, como investir na execução de receitas, organizar o guarda-roupas, passar mais tempo e conversar com os familiares próximos e trocar mensagens e conversar com amigos mais distantes.
Bater na tecla da doença o tempo todo nem sempre é produtivo e mudar o fluxo de pensamento pode ser importante, mas sem deixar de estar atento à gravidade da realidade para se cuidar.