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O turbulento processo de habilitação de frigoríficos de carne para a China

14 dos 22 frigoríficos aprovados para exportar para a China em 2019 eram na Amazônia.

Um grupo de políticos e representantes de frigoríficos paraenses se apertam em volta de uma mesa com carnes bem embaladas ao centro. Na sede do governo estadual em Belém, posavam para a foto oficial do anúncio dos quatro primeiros frigoríficos de carne do Pará habilitados para exportar à China continental, em setembro de 2019.

“Poder adentrar ao mercado chinês é algo que, desde 2011, vinha sendo solicitado pelos frigoríficos do nosso estado”, explicou o governador Helder Barbalho na ocasião.

A foto culminava com décadas de progressiva expansão pecuária que tornaram o Pará um recordista brasileiro: são 20,6 milhões de cabeças de gado — ou 2,5 para cada habitante.

A comemoração destoava da tragédia vivida pelo estado incrustado no coração da Amazônia um mês antes. Em agosto daquele ano, a região fora palco de uma temporada de queimadas que chocou o mundo — uma curva de destruição que se mantém em 2020. Na época, Barbalho explicou que se tratava de “queimada de floresta para fazer pasto”. O Pará se tornou também recordista em desmatamento.

Mas a devastação ambiental não ecoou nos recentes acordos da carne entre Brasil e China. Permeado por pressões políticas e econômicas e baseado quase exclusivamente em padrões sanitários, o longo processo de habilitação de frigoríficos deixa de fora exigências ambientais, como mostram requerimentos, audiências e protocolos analisados pelo Diálogo Chino.

De 2019 para cá, os chineses habilitaram ao todo 22 novos frigoríficos de bovino, sendo 14 deles na Amazônia. Agora, o bioma abriga 77, ou metade das plantas autorizadas para exportação à China no país, em um processo que preocupa ambientalistas.

“Critérios claros de controle de desmatamento e o respeito aos direitos territoriais indígenas e das comunidades deveriam ser mandatórios para as exportações da carne brasileira, particularmente a originada em biomas sob ataque”, contesta Adriana Charoux, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace.

Como é o credenciamento de frigoríficos

As habilitações internacionais seguem na esteira de negociações bilaterais e obedecem a critérios técnicos de cada país. No caso da China, há dois caminhos regulatórios: de Hong Kong e da China continental, a administração central do país.

Hong Kong importa a carne brasileira há duas décadas, embora com demanda limitada e de baixo valor agregado, segundo Thiago Bernardino, pesquisador de pecuária do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada.

Já a administração central aumentou recentemente a demanda – impulsionada por mudanças nos padrões consumo, a guerra comercial contra os EUA e, principalmente, o impacto da peste suína africana. Diferentemente de Hong Kong, isso permite que produtores acessem todas as províncias e atendam a um apetite por carne de maior valor agregado.

“O mercado da China está buscando cada vez mais qualidade”, explica Bernardino, “e pagando um preço adicional por isso”.

Para vender ao exterior ou em escala nacional, o frigorífico requer um registro do Serviço de Inspeção Federal (SIF). Para consegui-lo, ele precisa, entre outros documentos, da licença ambiental de operação, única exigência ambiental do processo. Ela atesta a gestão de lixo e água, além do plano contra excesso de ruído e trânsito na vizinhança.

Apesar de frigoríficos registrados passarem por inspeções contínuas, não é função do agente monitorar a renovação da licença ou eventuais embargos.

Com o SIF em mãos, o frigorífico precisa ainda ser habilitado pelo país comprador e obter um certificado sanitário internacional.

Seguindo tradição liberal, Hong Kong tem regras menos rígidas e segue protocolos já em curso de países exportadores. Ou seja, os frigoríficos registrados no Brasil podem se candidatar a convocações diretas para exportar, sem a mediação do governo brasileiro.

Os requisitos de Hong Kong que constam de um ofício do Ministério da Agricultura (MAPA) ditam apenas que o produto seja próprio para o consumo, sem contaminantes ou substâncias proibidas, que tenha sido submetido a inspeções e que seja proveniente de fazendas registradas.

Na China continental, as autoridades regulam mais criteriosamente quando abrir vagas, realizam missões de auditoria em plantas de países de interesse e/ou recebem uma lista de indicação do governo local a ser analisada.

A administração central exige que frigoríficos e governo brasileiro respondam e respaldem a questões sobre a capacidade de produção e as condições sanitárias dos animais e das instalações. Num formulário de registro, por exemplo, o país requer informações sobre: veterinários encarregados da inspeção; potenciais fontes poluidoras no entorno da planta; risco de contaminação cruzada dentro da fábrica; limpeza das instalações, armazenamento e transporte; tratamento da água usada na produção, entre outros itens similares.

Além de garantir o padrão de qualidade do produto, o empresário precisa ter capacidade de fornecimento. “A China é um gigante em termos de consumo, e eles precisam de volume”, comentou o adido agrícola em Pequim, Jean Manfredini.

O registro na China continental, portanto, expande o acesso de frigoríficos a um mercado “efetivamente infinito,” conforme explica Philip Fearnside, uma das autoridades nos estudos do tema. “Isso representa um perigo para o aumento do desmatamento da Amazônia.”

Queimada na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho. Foto: Christian Braga/Greenpeace.

Descontrole da cadeia de produção

No credenciamento, Hong Kong e China pedem ainda breve descrição do rastreamento dos bovinos, ou seja, dados das fazendas que fornecem o animal vivo aos frigoríficos. O objetivo é garantir a qualidade sanitária desde a origem do boi, mas, se reforçada, poderia servir como ferramenta contra a compra de áreas onde há desmatamento ilegal.

Hoje, o governo brasileiro monitora o trânsito de animais por guias obrigatórias, enquanto que a indústria da carne fiscaliza fornecedores por meio de satélite e auditorias. Um dos principais entraves ainda é coibir a lavagem de gado – rastrear as milhares de fazendas atravessadoras que fornecem bovinos não para o frigorífico, mas para outras fazendas.

No Brasil, o boi passa até 75% da vida em pastos que funcionam como fornecedores indiretos dos frigoríficos e que podem ser autores de crimes ambientais, como desmatamento ilegal e grilagem.

A União Europeia, considerada mais rígida, impõe exigências mais amplas de rastreio do gado. Uma circular do MAPA orientando inspetores sobre os requisitos do bloco detalha esse processo, que deve começar no transporte e na recepção dos animais, passando pelas fases de produção e culminando com o produto pronto para exportar. O bloco só compra de determinadas regiões – Pará e outros estados na Amazônia são excluídos.

Mesmo assim, não é o suficiente. Um estudo publicado na Science revelou que pelo menos 17% das exportações de carne bovina de biomas ameaçados para a UE podem ter rastros de desmatamento ilegal.

Pressões políticas e econômicas

Vacilos regulatórios já causaram problemas à indústria de carne brasileira. Entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, surtos de febre aftosa provocaram bloqueios de alguns estados produtores, ajudando a impulsionar frigoríficos na Amazônia ainda livres da doença.

Mais recentemente, em 2017, a operação Carne Fraca denunciou inspetores coniventes com a comercialização de carne imprópria. O episódio afetou a credibilidade do serviço federal, provocou embargos internacionais e adiou o credenciamento para a China. À época, o MAPA respondeu à crise com arrocho regulatório e a contratação de mais inspetores.

As tratativas foram retomadas em 2018 quando uma missão chinesa vistoriou 11 das dezenas de plantas indicadas pelo Brasil. O resultado foi um novo banho de água fria.

[Os chineses] fizeram um relatório que não foi muito favorável, excluindo um e deixando outros dez cheios de questionamentos”, afirmou a ministra da Agricultura Tereza Cristina em audiência pública. A repercussão negativa deixou o setor “em polvorosa”, disse ainda.

Cresceram novamente as incertezas de acordo e acirraram-se as disputas do setor. Enquanto isto, a ministra agendava para meados de 2019 uma expedição pela Ásia para tentar desfazer a imagem de desorganização deixada pelo Brasil.

O Pará estava disposto a brigar pela vaga inédita para a região. Internamente, resolveu pendências no licenciamento ambiental e melhorou o monitoramento da pecuária – embora ainda aquém do necessário. E começou sua articulação política. Nesse ínterim, o governador visitou a capital mais de dez vezes e levou pecuaristas ao gabinete da ministra para advogar pela inclusão das plantas paraenses.

Dois deputados federais, Fausto Pinato (PP), presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, e o paraense Cristiano Vale (PL) enviaram requerimentos ao ministério cobrando transparência sobre os requisitos para exportar carne do Pará à China.

Um vídeo de uma reunião a portas fechadas de abril de 2019 expôs entraves na mediação do governo na inclusão de frigoríficos menores — que sofrem menos escrutínio sobre suas atividades — entre os exportadores. A ministra reclamava do lobby do setor e da falta de zelo em fornecer informações aos chineses.

“Aí sabe o que acontece?,” ela disse aos presentes. “Deixa os grandes [frigoríficos] irem lá e negociar lá [na China].”

Cerca de 80% dos frigoríficos autorizados a exportar para a China não pertencem às três grandes empresas do setor, JBS, Marfrig e Minerva. Mas em volume de exportação, a JBS respondeu por mais de 30% do enviado a Hong Kong em 2017.

Interesses além do público

Não raro políticos são criticados por suas ligações com o agronegócio. O governador Barbalho e seu pai, o ex-senador Jader Barbalho, são investigados por receber doações supostamente ilegais da JBS em 2017. Helder também já foi empresário do agronegócio.

Vale é pecuarista e tem declarados quase R$ 1 milhão em bens, sendo R$ 145 mil em sete fazendas, incluindo um terreno de 250 hectares “sem documentos, a ser regularizado”.

Em meio a tantos interesses, a discussão sobre preservação ambiental passou ao largo do credenciamento de frigoríficos da Amazônia.

“O meio ambiente com certeza é uma prioridade”, disse Pinato. “Mas a gente sempre procura fazer um equilíbrio, respeitando a legislação, com uma posição bem moderada. Ou seja, sem prejudicar o crescimento econômico de exportações”.

Acordo alcançado

No dia 22 do de maio de 2019, a ministra desembarcava com a notícia de que sua comissão fora bem recebida pelos chinesas e que a definição da lista estava próxima.

“Chamei agora todo o setor, está todo mundo no Ministério da Agricultura, está todo mundo com jet lag, mas a reunião tem que ser hoje para ver quantas plantas serão”, explicou Teresa Cristina. “Quem vai decidir quem são os estabelecimentos é o próprio setor”.

Quatro meses depois, foram finalmente divulgadas as 17 plantas de carne bovina, além de seis de frango, uma de suíno e uma de jumento credenciadas. Em outubro, China e Brasil assinaram protocolos sanitários para exportar também carne termoprocessada. E em novembro de 2019, mais 13 frigoríficos foram habilitados, sendo cinco de bovinos.

No anúncio da vitória em Belém, o deputado Cristiano Vale já olhava para frente: “Eu tenho certeza que terão mais plantas ainda [habilitadas], com o potencial que o estado tem para absorver esse mercado”.

A China continental flexibilizou a vistoria de plantas brasileiras, que passariam a ser feitas por videoconferência a partir deste ano. Mas a eclosão do coronavírus paralisou novas aprovações. E seis frigoríficos exportadores chegaram a ser embargados.

Ainda assim, pecuaristas paraenses já sentiram o peso do mercado chinês na saúde do negócio. Com a habilitação de apenas quatro plantas, a China continental se tornou a maior compradora do Pará: 22,5 mil toneladas de carne bovina exportadas até junho.

No mesmo mês, o estado figurava no topo do ranking the desmatamento da Amazônia brasileira: foram perdidos 152 mil quilômetros quadrados de floresta, uma área quase do tamanho da Tunísia. Para Charoux, do Greenpeace, o clima era de frustração.

“Embora o estado concentre parte significativa do desmatamento”, lamentou, “não observamos medidas de empresas de restrição de compras ou mesmo de critérios mais rigorosos para a compra”. 

Bernardino, pesquisador de pecuária, diz que hoje a China tem mais olhos para o preço do que o meio ambiente, mas que pecuaristas acompanham o mercado chinês com lupa.

“Se você perguntar para todo mundo do mercado, qual é o medo hoje? É a China deixar de comprar”, afirma. “Se a China disser, ‘quero um protocolo ambiental’, vai ter que ter um”.

*Informações são do site Mongabay e Diálogo Chino.

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