Em reportagem especial, das jornalistas Julie Turkewitz e Manuela Andreoni, deste domingo, dia 26, o jornal americano, The New York Times, publicou “O Amazonas, doador de vida, espalha a pandemia”. Segundo a matéria, o vírus percorreu a região como as pestes do passado e se espalhou até as cidades e comunidades mais distantes, por meio do transporte utilizado nos rios, lotados de passageiros dormindo em redes, lado a lado.
Ainda segundo a matéria, no Brasil, as seis cidades com a maior exposição ao coronavírus estão sobre o rio Amazonas, mais de 18 mil indígenas fora infectados e 570 morreram vítimas da doença.
Com base em estudos de pesquisadores brasileiros, o texto dá exemplos da rápido extensão da covid-19, por cidades afastadas e citou que em Tefé a população tem igual possibilidade de contrair a doença, como em Nova York, onde houve um dos piores surtos mundiais.
A Folha de São Paulo publicou a matéria traduzida na íntegra, e que contou histórias de vítimas do novo coronavírus com relatos de familiares.
O rio Amazonas é a fonte de vida essencial da América do Sul, uma superestrada reluzente que corta o continente. É a artéria central de uma vasta rede de afluentes que sustenta cerca de 30 milhões de pessoas em oito países, movimentando suprimentos, pessoas e indústrias às regiões profundas da floresta, muitas vezes não alcançadas por estradas.
Mais uma vez, porém, em um eco doloroso da história, ele também leva doença. Enquanto a pandemia assola o Brasil, arrasando o país com mais de 2 milhões de infecções e mais de 84 mil mortes —atrás somente dos Estados Unidos—, o vírus está cobrando um preço excepcionalmente alto na região amazônica e das populações que dependem de sua abundância há gerações.
No Brasil, as seis cidades com maior exposição ao coronavírus estão sobre o rio Amazonas, segundo um extenso novo estudo de pesquisadores brasileiros que mediram os anticorpos na população.
A epidemia se espalhou tão depressa e amplamente pelo rio que em comunidades afastadas de pesca e agricultura como Tefé a população tem igual probabilidade de contrair o vírus que na cidade de Nova York, onde houve um dos piores surtos mundiais.
“Foi tudo muito rápido”, disse Isabel Delgado, 34, cujo pai, Felicindo, morreu do vírus pouco depois de adoecer na pequena cidade de Coari. Ele nasceu junto ao rio, criou sua família ao seu lado e construiu sua vida fazendo móveis da madeira que encontrava nas margens.
Nos últimos quatro meses, conforme a epidemia viajava da maior cidade da Amazônia brasileira, Manaus, com seus arranha-céus e fábricas, até vilarejos isolados no interior da selva, o frágil sistema de saúde vacilou sob o ataque.
Cidades e aldeias ao longo do rio têm alguns dos mais altos índices de mortes per capita do país —com frequência várias vezes maior que a média nacional.
Tyler Hicks, fotógrafo do New York Times, passou semanas junto ao rio, documentando a disseminação do vírus. Em Manaus, houve períodos em que o pavilhão da Covid estava lotado e cem pessoas morriam por dia, levando a cidade a abrir novos cemitérios na floresta densa. Coveiros colocavam as filas de caixões em longas trincheiras na terra recém-escavada.
Rio abaixo, redes se transformaram em macas, levando os doentes de comunidades sem médicos para barcos-ambulâncias que cortam a água. Em extensões distantes da bacia fluvial, aviões de socorro médico pousaram em pequenas pistas cortadas na paisagem luxuriante, para descobrir que seus pacientes tinham morrido esperando pela ajuda.
O vírus está cobrando um preço especialmente alto dos povos indígenas, num paralelo com o passado. Desde os anos de 1500, levas de exploradores percorreram o rio em busca de ouro, terra e convertidos —e mais tarde borracha, recurso que ajudou a alimentar a Revolução Industrial, transformando o mundo. Mas os forasteiros trouxeram a violência e doenças como varíola e rubéola, matando milhões de pessoas e eliminando comunidades inteiras.
“Este é um lugar que gerou tanta riqueza para outros”, disse Charles Mann, jornalista que escreveu extensamente sobre a história das Américas, “e veja o que está acontecendo com ele.”
Os povos indígenas têm aproximadamente seis vezes mais probabilidade de ser infectados pelo coronavírus que os brancos, segundo o estudo brasileiro, e estão morrendo em aldeias ribeirinhas distantes, onde não chega a eletricidade.
Mesmo nos melhores tempos, a Amazônia foi uma das partes mais desprezadas do país, lugar onde a mão do governo pode parecer distante, até inexistente.
Mas a capacidade da região de enfrentar o vírus foi ainda mais enfraquecida sob o presidente Jair Bolsonaro, cuja negação pública da epidemia às vezes parecia zombaria, apesar de ele mesmo ter dado positivo no teste.
O vírus surgiu durante seu turno desorganizado e opaco, rasgando o país. Desde seus primeiros dias no cargo, Bolsonaro deixou claro que proteger o bem-estar das comunidades indígenas não era sua prioridade, cortando suas verbas, reduzindo suas proteções e incentivando posses ilegais em seu território.
Para um estrangeiro, a região densamente florestada ao longo do rio Amazonas parece impenetrável, desconectada do resto do mundo.
Mas esse isolamento é ilusório, segundo Tatiana Schor, professora de geografia brasileira que vive num dos tributários do rio.
“Não há algo como comunidades isoladas na Amazônia”, disse ela, “e o vírus mostrou isso.”
Os barcos de que quase todo mundo depende, às vezes lotados com mais de cem passageiros durante muitos dias, estão por trás da disseminação do vírus, segundo pesquisadores.
E embora os governos locais tenham limitado oficialmente as viagens as pessoas continuaram percorrendo as águas porque quase tudo —comida, remédios, até a ida à capital para receber a ajuda emergencial— depende do rio. Estudiosos há muito se referem à vida na Amazônia como um “modo de ser anfíbio”.
A crise na Amazônia brasileira começou em Manaus, cidade com 2,2 milhões de habitantes que se ergueu da floresta em uma assustadora erupção de concreto e vidro, que se transforma nas bordas em grupos de casas de madeira empoleiradas em palafitas acima da água.
Manaus, a capital do estado do Amazonas, hoje é uma locomotiva industrial, grande produtora de motocicletas, com muitas empresas estrangeiras. Está estreitamente ligada ao resto do mundo —seu aeroporto internacional movimenta cerca de 250 mil passageiros por mês— e, pelo rio, à maior parte da região Amazônica.
O primeiro caso registrado em Manaus, confirmado em 13 de março, veio da Inglaterra. O paciente tinha sintomas brandos e fez quarentena em casa, em uma área rica da cidade, segundo autoridades de saúde.
Logo, porém, o vírus parecia estar em toda parte. “Não tínhamos mais leitos —nem mesmo poltronas”, disse o doutor Álvaro Queiroz, 26, sobre os dias em que seu hospital público em Manaus ficou completamente lotado. “As pessoas não paravam de chegar.”
Gertrude Ferreira dos Santos morava na extremidade leste da cidade, em um bairro espremido contra a água. Ela costumava dizer que sua coisa preferida no mundo era viajar pelo rio de barco. Com a brisa no rosto ela se sentia livre, dizia.
Mas em maio Santos, 54, adoeceu. Dias depois ela chamou os filhos ao seu leito e os fez prometer que ficariam unidos. Ela parecia saber que estava prestes a morrer.
Eduany, 22, sua filha mais moça, ficou com ela naquela noite. De manhã cedo, quando Eduany se levantou para tirar um descanso, sua irmã Elen, 28, pediu que ela voltasse.
Sua mãe tinha parado de respirar. Desesperadas, as irmãs tentaram a ressuscitação boca a boca. Às 6h o sol se erguia sobre a cidade quando Santos morreu em seus braços.
Quando os homens de macacão branco de proteção chegaram mais tarde para levar o corpo, as irmãs começaram a chorar.
Santos tinha sido uma mãe solteira. A vida nem sempre fora fácil. Mas ela manteve um sentido de maravilhamento, algo que seus filhos admiravam. “Em tudo o que ela fazia era alegre”, disse Elen.
O atestado de óbito de sua mãe enumera várias condições subjacentes, incluindo antigos problemas respiratórios, segundo as mulheres. Também lista falência respiratória, um indício chave de que a pessoa morreu de coronavírus.
Mas suas filhas não acreditavam que ela fosse uma vítima da pandemia. Certamente tinha morrido de outras causas, disseram. Deus não teria lhe dado uma doença tão feia.
Ao longo do rio, as pessoas diziam coisas parecidas sem cessar, relutando em admitir o possível contágio, mesmo enquanto a saúde de seus irmãos e pais declinava. Muitos pareciam pensar que sua família seria poupada, que um diagnóstico poderia de alguma forma manchar uma vida digna.
Mas enquanto esse estigma levava as pessoas a minimizar os sintomas do vírus por medo, dizem os médicos, a pandemia se espalhava rapidamente.
Depois de Manaus, o vírus viajou para leste e oeste, fugindo do centro de saúde da região. Em Manacapuru, a mais de uma hora da capital, Messias Nascimento Farias, 40, carregou sua mulher doente até o carro e acelerou por uma das poucas estradas da região para encontrar a ambulância que a levaria a um hospital. Sua mulher, Sandra Machado Dutra, 36, soluçava na caminhonete.
“O senhor é meu pastor, nada me faltará”, ele rezava sem parar, até que a entregou aos profissionais de saúde. Eles tiveram sorte, ela sobreviveu.
Mas para a maioria das pessoas que vive à beira do rio, a centenas de quilômetros de barco de Manaus, a maneira mais rápida de chegar a um hospital é de avião.
Mesmo antes da chegada do vírus, as pessoas em comunidades distantes com uma emergência de risco de morte podiam chamar uma ambulância aérea para levá-las a um hospital na capital.
Mas os pequenos aviões se mostraram perigosos para os doentes de Covid-19, às vezes causando a queda dos níveis de oxigênio quando o avião subia. Muito poucos pacientes do socorro aéreo pareciam sobreviver, disseram médicos.
Os profissionais viram-se levando os pacientes para morrer dolorosamente longe de tudo e de todos que eles amavam.
Certa manhã de maio, um avião branco pousou no aeroporto de Coari, a cerca de 370 quilômetros de Manaus.
Na pista sobre uma maca estava Delgado, 68, o moveleiro, descalço e quase sem respirar.
O doutor Daniel Sérgio Siqueira e um enfermeiro, Walci Frank, exaustos depois de semanas de trabalho constante, o carregaram para a cabine apertada. Quando o avião decolou, seus níveis de oxigênio começaram a baixar.
A filha de Delgado, Isabel, voltou-se para o médico em pânico. “Meu pai é muito forte”, disse. “Ele vai conseguir.”
Quando os Delgado finalmente chegaram ao hospital em Manaus, Isabel ficou chocada com as cenas ao seu redor. Parentes desesperados sustentavam pessoas que desmoronavam sob o peso da doença, trazendo-as às pressas para tratamento.
Ao mesmo tempo, os pacientes que conseguiram sobreviver à Covid-19 olhavam perplexos, nos braços de parentes e amigos em júbilo. “Eu estava lá, rezando para que Deus salvasse meu pai”, disse ela.
Delgado morreu alguns dias depois. Quando Isabel recebeu a notícia, o médico começou a chorar com ela.
A jovem não tinha dúvida de que o rio que seu pai tanto amava também havia lhe trazido o vírus. Em pouco tempo, ela e outros cinco membros da família também adoeceram.
Quando o coronavírus chegou às Américas, houve um temor generalizado de que ele cobrasse um preço devastador das comunidades indígenas de toda a região. Em muitos lugares ao longo do Amazonas esse temores parecem se realizar.
Pelo menos 570 indígenas do Brasil morreram da doença desde março, segundo uma associação que representa os povos indígenas do país. A vasta maioria das mortes foi em locais ligados ao rio.
Mais de 18 mil indígenas foram infectados. Líderes comunitários relataram que aldeias inteiras estão confinadas às redes, lutando para levantar-se para alimentar as crianças.
Em muitos casos, os próprios profissionais de saúde enviados para ajudar espalharam o vírus inadvertidamente.
No povoado ribeirinho de São José da Fortaleza, parentes da cacique Iakonero Apurinã enviaram notícias, um a um, de que não conseguiam comer, que ouviam vozes e estavam doentes demais para se levantar. Logo pareceu para a chefe que todos em sua comunidade estavam doentes.
Apurinã, 54, disse que seu grupo de 35 famílias Apurinã tinha sobrevivido a gerações de violência e trabalho forçado. Eles chegaram a São José da Fortaleza décadas atrás, acreditando que finalmente ficariam em segurança.
Foi o rio que os sustentou, alimentando, lavando e limpando-os espiritualmente, disse a chefe.
Então veio a doença, e a líder levava chás tradicionais de casa em casa. Logo ela mesma teve tosse e cansaço. Um teste em Coari confirmou que tinha pegado o vírus.
Apurinã não culpou o rio. Ela culpou as pessoas que viajaram por ele. “O rio para nós é purificação”, disse. “É a coisa mais linda que existe.”
Milagrosamente, disse ela em meados de julho, ninguém das 35 famílias tinha morrido. Em Tefé, cidade de 60 mil habitantes a quase 650 quilômetros de Manaus pelo rio, o vírus chegou com força terrível.
No pequeno hospital público, onde as autoridades pretendiam inicialmente acomodar 12 pacientes, quase 50 lotavam a unidade improvisada para Covid-19.
A doutora Laura Crivellari, 31, única especialista em doenças infecciosas no hospital, os acolhia fazendo o possível com dois respiradores, sem unidade de tratamento intensivo, muitos colegas doentes e ninguém para substituí-los.
Em um dos piores momentos, ela foi a única médica em serviço durante dois dias, supervisionando dezenas de pacientes em situação crítica.
A morte constante levou Crivellari ao ponto de ruptura. Em alguns dias ela mal parava para comer ou beber.
Em casa, compartilhava a angústia com seu companheiro. Disse que estava pensando em abandonar a medicina. “Não posso continuar desse jeito”, disse a ele.
A pandemia foi brutal para os profissionais de medicina em todo o mundo, e especialmente difícil para os médicos e enfermeiros que navegam longas distâncias, sofrem cortes de comunicação frequentes e profunda escassez de suprimentos ao logo do Amazonas.
Sem equipamento ou treinamento adequados, muitos enfermeiros e médicos morreram às margens do rio. Outros infectaram suas famílias.
Crivellari sabia que sua cidade era vulnerável. É uma viagem de três dias de Manaus a Tefé, com gaiolas levando apenas 150 pessoas por vez.
“Nosso medo era que uma pessoa infectada contaminasse todo o barco”, disse ela, “e foi o que acabou acontecendo.”
No início de julho, as mortes diárias em Tefé estavam diminuindo, e Crivellari começou a comemorar os pacientes que conseguia salvar. E não pensa mais em largar a medicina.
Tefé, em geral, deu um cauteloso suspiro coletivo. O vírus, pelo menos por enquanto, se deslocou para outro ponto do rio.