“O progresso roda constantemente sobre duas engrenagens. Faz andar uma coisa esmagando sempre alguém”, Victor Hugo
No ano de 1808 ocorre um fato no mínimo inusitado, a família real portuguesa, perseguida pelo tsunami chamado Napoleão e toda sua fome por territórios, vidas humanas, riquezas e poder político, atravessa o Atlântico com toda sua corte para uma colônia cheia de problemas, sustentada pela escravidão, repleta de precariedades sociais, mas com potencial natural e humano inigualáveis.
A razão de citar este evento nos serve para fundamentar a vinda de inúmeras melhorias trazidas pelo rei que deram início a um projeto urbanístico, econômico, cultural, científico e social sem precedentes. No entanto, e mais uma vez, estas mudanças atingiriam positivamente as classes mais abastadas, e traria sérias consequências para os mais pobres e desfavorecidos. Ou seja, houve uma acentuação das desigualdades e um agravamento da insatisfação popular acentuando ainda mais as crises sociais já existentes.
Pensar o Brasil do século XIX é reconhecer que se tratava já de uma sociedade com graves problemas sociais. E de compreender que o melhor a ser feito pelo poder político não visava diretamente a melhoria da vida das pessoas mais pobres, e a situação fica ainda pior quando se refere aos escravizados e indígenas já tão massacrados pelo colonialismo brasileiro de então. O regente passa a favorecer mais a Portugal que o Brasil.
Entre ditos e não ditos é sempre curioso ouvir e repetir jargões que nada mais são do que um orgulho flácido de nossos egos, vencidos e derrubados por inúmeros problemas e gritantes injustiças sociais e humanas. Sim! O Brasil do futebol é um país desigual, mesquinho com seus filhos mais necessitados e extremamente generoso com aqueles que mais têm, e principalmente generoso para com os detentores do poder.
Este é o Brasil que por último decretou o fim da escravatura, é o país de milhares de crianças fora das escolas, de analfabetos, o país dos miseráveis, o lugar que mais mata homoafetivos no mundo, o país epicentro da COVID-19, com mais de 600.000 mortos. Neste país temos leis, possuímos uma Constituição que preza pela defesa dos Direitos humanos, temos a Carta Maior, porém, a igualdade pregada e ainda não suficientemente defendida, não favorece a todos os destinatários.
No Brasil, de fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019 “1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. Dentro de casa, a situação não foi melhor. Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer uma violência, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou ao menos procurou ajuda”. (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503)
No país das desigualdades, a cada 7 vereadores, apenas uma é mulher, o que significa que haja uma desigualdade gritante e nociva que nos afeta a todos. (https://www.politize.com.br/participacao-das-mulheres-na-politica-brasileira/)
O que dizer deste país? O que fazer para reverter tais situações. Tudo parece contribuir para um declínio certo e inevitável. Mas uma pergunta permanece alerta. Por quais motivos somos tão inertes frente a tais realidades? Por quais motivos uma maioria de pobres e miseráveis escolhem uma minoria de governantes que até agora, apenas agravaram a situação?
Nosso país coleciona uma gama de números que retratam as desigualdades, mas, não se trata apenas de uma equação ou gráfico numérico. Falamos aqui de pessoas. Seres humanos que ao longo de suas vidas não ganharão mais do que um salário mínimo mensal, e se aprofundarmos na realidade dos bolsões de pobreza, veremos que em dados do IBGE set/2019 (R7.com), metade dos brasileiros vive apenas com R$ 413,00/mês, 5% da população vive com R$ 51,00/mês, enquanto 1% da população brasileira pode viver com R$ 16.297. Enquanto que de outro lado, o patrimônio dos “super-ricos” brasileiros cresce US$ 34 bilhões durante a pandemia, diz Oxfam. E, segundo o mesmo estudo, entre 18 de março e 12 de julho deste ano, o patrimônio dos 42 bilionários do Brasil passou de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1 bilhões.
Em tempos de pandemia a situação não foi menos cruel. Segundo a diretora executiva da Oxfam, Katia Maia. “A COVID-19 não é igual para todos. Enquanto a maioria da população se arrisca a ser contaminada para não perder emprego ou para comprar o alimento da sua família no dia seguinte, os bilionários não têm com o que se preocupar”. O mesmo cenário se observa quando se analisa o desempenho das fortunas dos 73 bilionários da América Latina e do Caribe. Eles aumentaram as suas fortunas em US$ 48,2 bilhões entre março e julho deste ano, período de forte incidência do coronavírus.
E por que não se falar do Brasil, país da carteirada? Frases do tipo “você sabe com quem está falando?” São expressões das várias facetas da desigualdade social brasileira e da exigência que algumas classes de pessoas fazem, ou por ter dinheiro, por fazer parte de algum poder e muitas vezes até mesmo por possuírem conhecimento. Este cenário nos faz compreender que existem privilégios para poucos e poucas vezes o povo sofrido, pobre e trabalhador tem de fato suas necessidades colocadas como prioridade.
No país dos privilégios o filho do pobre trabalha duro, colhe livro da lixeira para prestar o vestibular e virar uma bela desculpa para afirmar que “só não vence quem não quer”. Enquanto a prole do baronato dirige, sem habilitação, suas Hiluxes e Corollas para assistir aula nas melhores escolas das cidades. É o país em que o profissional da educação tem que se virar para que haja aula para todos, como se este devesse ser um direito e não um sacrifício de vida para nossos professores.
No Brasil da teledramaturgia as ininterruptas novelas “ensinam” uma realidade desigual e muitas vezes ilusória, vendem uma imagem burguesa de sociedade como se esta fosse possível para todos. No Brasil do descaso social uma pessoa sabe mais da vida das celebridades do que a biografia de um pensador, de um filósofo, ou mesmo de um literário, infelizmente!
Em um país onde os privilégios são defendidos e ovacionados não pode haver lugar para a justiça e para o respeito mútuo, onde a ideia de “ser alguém na vida” significa ter dinheiro e status, enquanto o “Zé ninguém” passará uma vida inteira sobrevivendo de trabalho forçado, mal remunerado e muito distante de uma vida plena e digna.
O Brasil dos privilégios não abre mão de suas benesses, não compartilha renda, não assegura empregos suficientes. Não abre mão da grande fatia que exige do bolo. Hoje ouvimos falar da nova escravidão, o chamado empreendedorismo “uberizado” em que pessoas sem garantias trabalhistas trocam seu descanso, seu lazer, seu tempo e sua vida por migalhas e muita exploração.
Onde há privilégios há desigualdades, onde existem pessoas beneficiadas mais do que outras, há um indício de algum tipo de injustiça, de alguma forma de exploração humana. A desigualdade em nosso país é obscena e cruel, ela mata e escraviza, ela rouba direitos e dilacera as dignidades. Sim, somos um povo lutador, criativo, empreendedor, trabalhador, e há quem se aproveite disso para se “dar bem”, para enriquecer.
E as prioridades? As prioridades estão no final da fila de interesses daqueles que deveria servir e gerir para amenizar as dores, a fome e o sofrimento da população mais carente e mais necessitada. Não podemos mais fundamentar o crescimento de nossa sociedade com privilégios. É necessário desconstruir a ideia de que em uma sociedade democrática hajam brechas para quaisquer formas de exclusão.
Educação e saúde, saneamento e segurança, trabalho e transporte digno, lazer e cultura, parece que falar destes direitos se tornou insulto para um grupo de pessoas que detiveram o poder e a maior parte das riquezas para si mesmos e para seus interesses próprios. É uma realidade, dura, crescente, imunda e desumana, é a pátria amada, é o Brasil.
Por Sérgio Bruno
É um livre pensador e professor formado em Ética e Filosofia Política, com mais de 15 anos de experiência na docência e formação de jovens e adultos. Atualmente também é professor em cursos pré-vestibulares na área de Ciências Humanas e suas tecnologias, atuando também como professor de Sociologia, Cultura Religiosa e Teologia. É apaixonado por temas como Cultura e Sociedade, Cidadania, Política, Direitos Humanos e Diálogo Inter-religioso. Adora livros, leitura e literatura e deseja convidar você para compartilhar pensamentos, ideias e reflexões diversas.