O Ministério da Saúde pagou R$ 24,3 milhões para uma empresa que fornece aeronaves para o transporte aéreo de índios e de profissionais de saúde e que tem como sócio um empresário suspeito de ceder pequenos aviões ao garimpo ilegal de ouro na terra indígena ianomâmi, a maior do Brasil, de acordo com a reportagem da agência O Globo.
A Justiça Federal já decretou a busca e apreensão de um avião em nome do empresário, por suspeita de uso em esquema de extração criminosa de ouro no território ianomâmi.
A mesma aeronave chegou a ser fotografada por índios em suas terras – eles enviaram as imagens à PF (Polícia Federal) e associaram o veículo ao garimpo ilegal, como consta em inquérito em curso na PF em Roraima. Na mesma reserva, a empresa presta serviço de saúde indígena. Somente no governo de Jair Bolsonaro, já recebeu R$ 17 milhões pelo serviço prestado.
Além do suposto jogo duplo em território ianomâmi, a Icaraí Turismo Táxi Aéreo está proibida desde o último dia 17 de operar voos, por decisão da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). O órgão suspendeu cautelarmente o certificado de operador aéreo da empresa, que “não demonstrou possuir controle sobre a qualificação de seus tripulantes, permitindo que estes tripulem aeronaves sem estarem aptos”. Mesmo assim, a empresa continuou transportando indígenas e profissionais de saúde dos distritos sanitários especiais indígenas, vinculados ao Ministério da Saúde. A informação foi confirmada à reportagem pelo próprio sócio da empresa, Rodrigo Martins de Mello. A decisão da Anac, que atesta falta de treinamento de pilotos e tripulantes, foi publicada no Diário Oficial da União. Helicópteros da Icaraí transportaram ainda empregados da estatal Codevasf. O pagamento foi feito no último dia 9.
“Eu não sabia que a Anac tinha suspendido o certificado de operador aéreo. Sigo prestando o serviço, atendendo às solicitações dos DSEIs para transportar equipes de saúde e remover indígenas doentes. Isto vai gerar multa à empresa (por parte da Anac)”, disse Mello.
Os primeiros contratos com a Icaraí Turismo Táxi Aéreo foram assinados, sem licitação, em 2018, último ano do governo de Michel Temer. Naquele ano, ela recebeu R$ 7,4 milhões para alugar aeronaves usadas em serviços de saúde indígena na terra ianomâmi, requisitadas pelo DSEI Ianomâmi, e em outras reservas, sob a responsabilidade de outros cinco DSEIs: Leste (que atende à reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima), Alto Rio Negro (responsável por comunidades na fronteira com a Colômbia e com a Venezuela, no Amazonas), Vale do Javari (fronteira entre Amazonas e Peru), Alto Purus e Alto Rio Juruá (estes dois últimos no Acre).
No governo Bolsonaro, os pagamentos se intensificaram, chegando a R$ 17 milhões. O mais recente foi feito no último dia 1º, no valor de R$ 600 mil. Somente a gestão do general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, pagou mais de R$ 1 milhão à empresa. Contratos seguem vigentes até 2021. Documentos obtidos pella reportagem e informações levantadas pela reportagem apontam suspeitas sobre aeronaves do sócio da Icaraí em garimpo ilegal na terra ianomâmi.
O problema ali é histórico, com agravamento a partir da década de 80. Entre idas e vindas, a presença de garimpeiros na região explodiu em 2019, a partir do incentivo feito pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Associações de indígenas calculam que 20 mil garimpeiros estão dentro da terra indígena, onde vivem 26 mil índios, em Roraima (a grande maioria) e Amazonas (o território se estende pela Venezuela). O aumento dos casos de Covid-19 nas aldeias é atribuído a essa presença dos garimpeiros, já responsáveis pela contaminação dos rios por mercúrio e por amplos desmatamentos de áreas para a exploração do ouro.
Episódios reforçam suspeita
O inquérito da operação Tori – o mesmo que resultou, no último dia 3, na prisão de Pedro Emiliano Garcia, condenado por genocídio de ianomâmis na década de 90 – traz a ordem de apreensão de uma aeronave de Mello expedida pela Justiça Federal em Roraima. O processo também contém as fotografias e a denúncia formulada pelos indígenas a respeito da presença do avião em suas terras, supostamente a serviço do garimpo ilegal.
Um relatório da PF de 2017 afirma que o avião fazia voos para abastecer o garimpo ilegal às margens do Rio Uraricoera. Ainda segundo a PF, uma outra aeronave, de um dos presos na operação, estava no nome de Mello. Aviões de sua propriedade foram encontrados por policiais em pista de pouso usada por garimpeiros. Além disso, o empresário foi sócio de um dos acusados presos por operar pistas ilegais para o garimpo, conforme a PF.
Em abril deste ano, o empresário se envolveu em mais um episódio que aponta para a suspeita de ligação com o garimpo ilegal no território ianomâmi. Naquele mês, a Icaraí já havia recebido R$ 22,6 milhões do Ministério da Saúde para fornecer aeronaves ao transporte de indígenas e profissionais de saúde, a serviço dos DSEIs. O outro sócio da Icaraí acusou Mello de ter roubado dois helicópteros – levados do Pará e de Santa Catarina – e formalizou a acusação à Polícia Civil de Roraima, que obteve um mandado da Justiça para apreender as aeronaves. O sócio afirmou que temia o uso dos helicópteros em áreas de garimpo. Depois de dois meses de investigação, a polícia concluiu que não houve roubo. E as aeronaves seguem apreendidas.
“A polícia foi usada para que um sócio tentasse reaver helicópteros do outro sócio, numa disputa na esfera cível. Houve má-fé”, disse à reportagem a delegada Cândida Senhoras, que conduziu a investigação.
Investigados por garimpo ilegal pela PF estavam por trás de uma outra empresa de transporte aéreo que prestava serviço aos DSEIs, a Paramazônia Táxi Aéreo. A empresa, porém, mudou de nome e de sócios em 2018, e virou a Voare Táxi Aéreo, conforme aprovado pela Anac. A Voare já recebeu R$ 197 milhões do Ministério da Saúde entre 2014 e 2020 (até 2 de julho) para transportar indígenas e profissionais de saúde às terras ianomâmi e à reserva Raposa Serra do Sol. A empresa também recebeu recursos de outros órgãos federais, como Exército e Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma segunda empresa de Mello, a Cataratas Poços Artesianos, prestou serviços a DSEIs e ao Exército e recebeu R$ 8,6 milhões entre 2014 e 2018. Documentos do inquérito da PF apontam ainda que ele foi sócio em uma terceira empresa, juntamente com um investigado que chegou a ser preso na Operação Tori. A empresa é a Tarp Táxi Aéreo, que recebeu R$ 29 milhões do Ministério da Saúde entre 2016 e 2018. O empreendimento já tem outros sócios.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, a Icaraí Turismo Táxi Aéreo enviou uma nota assinada pelo sócio Paulo Brittes Martins. Segundo ele, Mello vem realizando “atos imprudentes na administração da empresa”. Por haver um “desacordo sobre a integralização do capital social”, uma ação de dissolução da sociedade foi ajuizada na Justiça em Araucária (PR), onde está sediada a empresa, em 20 de abril, diz a nota. “Não temos nenhum conhecimento sobre os atos que Rodrigo Martins de Mello vem realizando em nome da empresa. A empresa aguarda o pronunciamento judicial para afastar o sócio continuar suas operações”.
À reportagem, Mello afirmou que nunca foi chamado à PF para depor, nem arrolado nos autos da investigação. Um depoimento foi dado à Justiça, segundo ele. A aeronave apreendida pela PF, por determinação da Justiça Federal, foi vendida, mas sem a conclusão do procedimento da venda junto à Anac, conforme o empresário.
“Quando for intimado, vou apresentar o contrato de compra e venda”, disse.
O empresário afirmou ser “muito parceiro” do investigado pela PF que chegou a ser preso na operação Tori, com uso do aeródromo dele e “arrendamento operacional” de aeronaves. Mas os dois nunca foram “documentalmente sócios”, segundo Mello. Ele disse ainda que tem uma empresa de mineração, mas que faz apenas prospecção de minério, em fase de liberação das pesquisas.
Mello disse que já teve piloto de sua empresa envolvido em acusação de garimpo ilegal em território ianomâmi: “Há oito anos presto serviço aos DSEIs. Nunca participei de garimpo. Já tive pilotos que participaram. Diante de denúncia de desvio de rota para beneficiar garimpeiro, houve a demissão”.
O Ministério da Saúde limitou-se a dizer que “a atual gestão da Secretaria Especial de Saúde Indígena tem sido rigorosa no cumprimento de pré-requisitos legais para contratação de serviços e atua com mecanismos de controle para evitar que irregularidades aconteçam”. “As contratações só são efetivadas após apresentação de documentos exigidos pela Lei 8.666”.