Conhecidos pela grande habilidade e desenvoltura comercial, os ciganos têm sofrido com a impossibilidade de venderem seus produtos. Grande parte trabalha com venda e troca de diferentes tipos de produtos e utensílios, mas foi necessário paralisar as atividades em meio à pandemia do novo coronavírus. Sem alternativas de renda, muitas famílias têm dependido da assistência do poder público e de doações, mas que não chegam a todos. É o caso da comunidade de ciganos que vive em Sousa, no sertão da Paraíba, uma das maiores do país, com mais de 450 famílias, e também uma das mais vulneráveis.
“Historicamente, nós ciganos sempre encontramos muitas dificuldades para conseguir emprego, por isso a troca e a venda são tão importantes, mas desde o início da quarentena deixamos de trabalhar”, afirma Francisco Bozzano, um dos líderes ciganos em Sousa. Apesar de o acampamento não ficar na área urbana do município, a chegada do novo coronavírus deixou a comunidade apreensiva. “A gente passou a deixar só uma pessoa ir até a cidade para comprar algo, para evitar ao máximo o contágio. Sabemos que se alguém pegar esse vírus, não vamos ter muito acesso à saúde e essa pessoa pode morrer”, diz Bozzano, que reclama do posto de saúde que não tem médico e da dificuldade de obter o auxílio emergencial de R$ 600 oferecido pelo governo federal. Como líder de uma extensa família, Bozzano tentou inscrever as pessoas no programa, mas nem todos conseguiram se cadastrar ou tiveram o benefício concedido.
De acordo com dados do Ministério da Cidadania, 5.604 famílias ciganas estão inscritas no programa Bolsa Família. Elas passaram a receber o auxílio emergencial durante a pandemia, mas o governo ainda não tem dados sobre os demais ciganos que conseguiram obter o benefício a partir do cadastro como trabalhadores informais, realidade da grande maioria. “Foi solicitado à Secretaria Especial do Desenvolvimento Social do Ministério da Cidadania, em 20 de maio de 2020, as informações disponíveis sobre o acesso dos povos e comunidades tradicionais ao auxílio emergencial, sobre o total de beneficiados, casos em análise e casos não deferidos”, informou a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em nota enviada à reportagem.
Dados
Um dos principais desafios para lidar com a situação dos ciganos na pandemia é a falta de dados. Não se sabe ao certo o tamanho dessa população no Brasil nem sua distribuição geográfica. O único dado oficial começou a ser coletado em 2011, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) concluiu um levantamento sobre a existência de acampamentos ciganos em 291 municípios de 21 Estados. No entanto, o levantamento é impreciso, já que só foram contabilizadas as prefeituras que responderam à pesquisa. Além disso, a maioria dos ciganos no país não está mais localizada em acampamentos e muitos já se fixaram em áreas urbanas, constituindo em bairros inteiros onde praticamente só vivem ciganos, já que a cultura de viver em proximidade é muito forte entre eles.
“O IBGE só contabiliza acampamento, e acampamento é o mínimo. Você só pode conduzir política pública séria no país é se você tiver dados e números”, afirma Elisa Costa, diretora da Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK), uma entidade sem fins lucrativos, com sede em Brasília, que atua na divulgação da cultura cigana e na defesa dos direitos humanos dessa população tradicional.
“Outro imenso problema é que, como parte dos ciganos mantém uma mobilidade, eles não costumam ter registro de nascimento de seus filhos, a partir de quando grande parte dos ciganos não tem nem existência jurídica. Os que têm, muitas vezes não conseguem ter os demais registros, como CPF [Cadastro de Pessoa Física], carteira de identidade. Quando chega uma pandemia, encontra um grupo já fragilizado economicamente, civilmente, juridicamente, não consegue estar no Cadastro Único de programas sociais do governo, então a crise cai sobre a cabeça dos ciganos de uma maneira mais dolorosa”, afirma Luciano Mariz, subprocurador-geral da República, considerado um dos precursores da causa cigana no Ministério Público Federal (MPF), órgão que tem sido importante no reconhecimento e na garantia de direitos dessa população.
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o IBGE fará um censo populacional dos ciganos, mas ainda não há data definida. “A SNPIR trabalha junto ao IBGE para a construção deste trabalho com a realização de seminários para aprimoramento dos mecanismos de pesquisa do instituto junto às instituições representativas”, informou o órgão.
Da diáspora ao reconhecimento
A teoria mais aceita entre os estudiosos é que os ciganos têm origem na Índia, a partir de uma dissidência de castas no país asiático, há cerca de mil anos, que fez com que o grupo se espalhasse primeiro pela Europa e depois para o resto do mundo (diáspora). No Brasil, acredita-se que os primeiros ciganos chegaram em 1574 ou um pouco antes, segundo registros dos padres jesuítas. Há três etnias mais importantes: os Calon, grande maioria no país, oriundos da Espanha e Portugal, os Rom, com origem na Romênia, Turquia e Grécia, e os Sinti, que vieram principalmente da Alemanha e da França.
A perseguição constante estimulou o caráter nômade do povo cigano e desenvolveu sua característica mercantil, mas também fez com que uma série de mitos, preconceitos e estereótipos fossem associados à comunidade. “As sociedades locais na Europa e nas Américas atribuíam qualquer tipo de aberração a esse grupo de forasteiros para eles irem embora, foi aí que se formou um imaginário. Como se fosse traço cultural, passou-se a acreditar que ciganos roubam crianças, que são ladrões, mas isso foi atribuído ao nosso povo por pessoas que não queriam que a gente ficasse no mesmo local que eles”, conta Anne Khelen, de Maceió (AL), uma cigana descendente dos Louvara, um subclã dos Rom.
A primeira legislação a mencionar a presença cigana no Brasil só foi editada na década de 1930, no governo Getúlio Vargas, mas com o objetivo de proibir a entrada dessa população no país. Nas décadas seguintes, os ciganos permaneceram na invisibilidade e sobreviveram, no plano internacional, até mesmo ao nazismo, quando a perseguição de Adolf Hitler na Alemanha do final da década de 1930, durante o Terceiro Reich, resultou no holocausto de cerca de 1 milhão de ciganos.
Em território brasileiro, os ciganos só passaram a ter um reconhecimento público mais visível no final da década de 1990, durante as primeiras discussões étnico-raciais no plano nacional de direitos humanos. Mas a agenda passou a ganhar mais impulso a partir de 2003, com a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério. Em 2006, um decreto criou o Dia Nacional do Cigano, celebrado em 24 de maio. Em 2011, o Ministério da Saúde editou a Portaria 940, que dispensou a apresentação de comprovante de residência para ciganos itinerantes obterem o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). No ano seguinte, o Ministério da Educação publicou uma resolução para assegurar às crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância o direito à matrícula em escola pública, outra demanda dos ciganos. Na prática, no entanto, muitos ciganos reclamam que as medidas não são cumpridas na ponta. “São políticas ainda insuficientes, mas começou a mover o poder público”, afirma Igor Shimura, presidente da Associação Social de Apoio Integral aos Ciganos (Asaic).
A expectativa agora é que o governo avance numa agenda mais ampla de garantia de direitos, mas também da sua promoção. Além do Plano Nacional do Cigano, que está em construção no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei que cria o Estatuto do Cigano, que prevê um conjunto de políticas públicas na área de saúde, educação e cultura para o povo cigano e pode representar um passo importante para tirar essa população da invisibilidade histórica. Se aprovado, o estatuto vai assegurar a obrigatoriedade do ensino da história geral da população cigana nas escolas, a preservação das línguas tradicionais e do patrimônio cultural cigano.
“A gente vive numa sociedade que odeia ou obriga a comunidade cigana a se estereotipar. Se eu não uso dente de ouro, saia, roupas coloridas, não sou cigano, isso é muito doloroso. Muitas famílias preferem simplesmente anular isso, anular essa ancestralidade, mas aí quando a gente vai estudar e pesquisar, a gente se reconhece, por isso é importante dar a esse cigano o direito de conhecer a própria história e se reconhecer nela. Acho que pouco a pouco temos avançado, sou otimista”, afirma Anne Khelen.