*Franciane Silva – Da Redação Dia a Dia Notícia
A Universidade do Estado do Amazonas (UEA) formará, no ano de 2022, a turma com maior número de alunos indígenas que estão cursando Arqueologia – Bacharelado, curso ofertado na modalidade regular no município de São Gabriel da Cachoeira (a 853 quilômetros de Manaus). Os 22 alunos representam a terceira turma de Arqueologia que se formará pela universidade, a primeira foi no município de Iranduba e a segunda em Manacapuru.
A turma possui a especificidade de serem indígenas de diversas etnias como a Baré, Tukano, Baniwa e Tariana, que estão estudando a cultura material (vestígios arqueológicos) que foram deixadas por seus antepassados. Geralmente, o estudo desta cultura material é feito por profissionais de fora, que vêm de outros estados ou até mesmo de outros países, por este motivo o perfil da turma que é composta por indígenas se torna significativo.
A turma de finalistas em Arqueologia, deve permanecer na cidade de Manaus até o dia 15 de agosto para atividades referentes a catalogação de acervos arqueológicos, no Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Ao Dia a Dia Notícia, o coordenador do curso, o professor Dr. Luciano Teles, salientou que como arqueólogos formados os alunos poderão estudar a riqueza arqueológica que faz parte do cotidiano de muitas comunidades da Amazônia.
“Em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, existem comunidades em que cerâmicas e demais registros arqueológicos estão visíveis no solo […] Certamente eles contribuirão, a partir dos estudos desses registros, para descontruir algumas imagens equivocadas acerca da Amazônia como a de “vazio demográfico”, a da “inexistência de sociedades complexas”, etc”, disse o coordenador.
Já o professor da disciplina, Dr. Carlos Augusto da Silva, explicou ao Dia a Dia que foi feito um acordo entre a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e a UEA para que os 22 alunos pudessem vir do município de São Gabriel da Cachoeira e realizar os trabalhos acadêmicos no Laboratório de Arqueologia da Ufam.
“Esses alunos são o maior número de indígenas que vão se formar em arqueologia daqui a dois, três meses, no final deste ano. São dados inéditos, porque pela primeira vez se reúne o maior número de indígenas. Inclusive, eu sou indígena, eu sou Apurinã, meus avós maternos e paternos todos eram ligados a essa ancestralidade”, disse.
O professor disse ainda que, por meio do curso, os alunos estão “se reconhecendo” e que se mostram muito empolgados e envolvidos com a disciplina. Carlos destacou ainda que os materiais em que os alunos estão trabalhando, são elementos que estão exatamente ligados aos povos ancestrais indígenas.
“Nós temos aqui esses futuros arqueólogos que falam ainda a língua materna como o Tucano, Baniwa e entre outras línguas. E hoje no século 21 é importante reconhecer que essa história que hoje é contada no Brasil se tem a partir do sacrifício desses povos. Então a arqueologia pode trazer essa história de forma bastante sintética”, explicou.
Único arqueólogo
O laboratório, em que os 22 alunos estão realizando as disciplinas na Ufam, possui apenas uma arqueólogo formado que é o Técnico do Laboratório de Arqueologia, mestre Bruno Pastre Máximo e que passou por meio de concurso público. Em entrevista ao Dia a Dia, Bruno explicou que em São Gabriel da Cachoeira não há laboratório, equipamentos e as condições necessárias para a prática de ensino.
“Essa parceria entre a Ufam e a UEA, nós conseguimos viabilizar para que eles (alunos) consigam aprender aqui e também conhecer nossas coleções, que são as mais ricas do Brasil e que foram responsáveis até por mudar a própria história da Amazônia”, explicou.
Sobre a turma, o arqueólogo disse ser muito bonito e muito marcante, porque diferente das pessoas que não são indígenas, os alunos possuem uma outra perspectiva por possuírem um legado ancestral direto com a cultura deles.
“Eles conseguem por ser indígenas, resignificar esses materiais a partir do que eles vivem hoje. Durante as aulas eles trazem muitas referências muito interessantes sobre como interpretar o material arqueológico, que quem não é indígena teria muita dificuldade. Então isso é muito lindo de se ver”, disse Bruno.
O arqueólogo também falou sobre a importância da turma, pois seria uma forma dos alunos reivindicarem e se conectaram com seus ancestrais mais remotos, onde o laboratório possui coleções que vão até dois mil anos de idade. “Eles são mais um capítulo dessa história, desse legado ancestral”, explicou.
Futuros arqueólogos
Odanilde Freitas Escobar, da etnia Baré, uma das alunas do curso de Arqueologia, destacou a importância da turma ser composta por indígenas, pois possui uma ligação bastante forte com seus antepassados indígenas.
“Tudo que está no solo, na terra, praticamente é a assinatura deixada por eles na rocha, no solo, e todo o nosso redor”, disse a aluna.
A acadêmica destacou que é um imenso prazer estar realizando os trabalhos no laboratório da Ufam, pois é um trabalho que se iniciou com grandes arqueólogos da Amazônia e do Brasil.
“Pra mim, como acadêmica do curso é muito importante e um imenso prazer poder tocar nesses materiais que liga a gente de alguma forma aos nossos antepassados, ancestrais indígenas”, disse Odanilde.
Já o aluno Anjo Duarte da Gama explicou que o que mais lhe chamou a atenção, no curso de Arqueologia, foi o contato com os vestígios, a cultura material e que sempre teve apreço pela cultura indígena. O acadêmico destacou que no município de São Gabriel da Cachoeira, se encontra em qualquer local o solo de terra preta que é um indicador de sítio arqueológico.
“A importância da gente tá se formando nesse curso, é trazer e mostrar o valor das sociedades antigas para a sociedade atual. A gente vê também através da discriminação que ainda ocorre nas escolas, que eles apresentam como pré-história, a história antiga indígena, sendo que não foi assim”, explicou.
Para Gama, cada pessoa tem o direito de escolher o que quer fazer da vida e que o mais importante é sentir prazer de fazer aquilo, no seu caso seria contar a história dos seus ancestrais. Sobre o futuro, o acadêmico destacou que pretende seguir carreira na parte de arqueologia.
“O que eu espero muito é que saia nos livros didáticos a história indígena, onde conta esse passado que foi elevado pra um canto escuro. Eu quero que essa história chegue em um público maior […] eu gostaria que eles (indígenas) se encham de orgulho”, ressaltou.
Os dois acadêmicos destacaram também que mais ‘portas’ precisam ser abertas, para que outros indígenas também tenham acesso a educação superior. “Eu espero que as autoridades vejam mais sobre esse lado, para que tenha graduação, mestrado, doutorado para que assim a gente possa se profissionalizar mais e assim abrir portas para outros que querem entrar nessa área”, disse a aluna Odanilde.
Laboratório
De acordo com o professor Carlos Augusto, o Laboratório de Arqueologia da Ufam concentra uma coleção gigantesca fruto de trabalhos que foram realizados no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Destacou que durante a obra do Gasoduto Coari-Manaus, foram recolhidos uma grande quantidade de materiais arqueológicos.
“Por conta disso, uma medida mitigatória foi a compensação da construção de um laboratório apropriado com todas as técnicas modernas para atender a demanda. Então, essa obra ela começa no final de 2011 e em 2014 foi entregue à Direção Superior da Universidade Federal”, explicou.
O professor destacou que em Manaus há três instituições que recebem materiais arqueológicos sendo a Ufam, o Musa e o Governo do Estado que possui um laboratório no palacete provincial. Mas o maior centro, com o maior número de coleções é o Laboratório de Arqueologia da Ufam. “Aqui no laboratório nós temos pontas de flecha com idade de sete, oito mil anos”, frisou.